- Texto: O ovo e a galinha
- Autor: Clarice Lispector
- Interpretaçío: Kell Bonassoli (@outrodelirio)
- Música: If I Had a Chiken – Kevin MacLeod
- Duraçío: 19min58s
Arte da vitrine: Rodrigo Sena
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Clarice Lispector
O ovo e a galinha
De manhí na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que nío se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; nío há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo nío tem um si-mesmo. Individualmente ele nío existe.
Ver o o vo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cío vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também nío se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente nío sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para nío entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.
O ovo nío existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito nío existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a naçío chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, nío foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atençío superficial para nío quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de nío entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo nío é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu nío sei do ovo é o que realmente importa. O que eu nío sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorizaçío. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Nío toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Nío toco nele – Mas dedicar-me í visío do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Nío, o ovo apenas me vê. É isento da compreensío que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um tringulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Nío. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mío desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Míe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que nío o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas nío pode ser chamado de branco. Nío porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Nío tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda nío nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer -œum rosto bonito-, mas quem disser -œO rosto-, morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Nío o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer -œo ovo da galinha-. Se eu disser apenas -œo ovo-, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relaçío ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo nío é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo nío é para o ovo, ele nío se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele nío pode: nío poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de nío poder, que se irradia como um nío querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo nío existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela nío sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvaçío. Pois parece que viver nío existe. Viver leva a morte. Entío o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.
É necessário que a galinha nío saiba que tem um ovo. Senío ela se salvaria como galinha, o que também nío é garantido, mas perderia o ovo. Entío ela nío sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar nío fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha nío foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Nío tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estío sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela nío sabe se explicar: -œ sei que o erro está em mim mesma-, ela chama de erro a vida, -œnío sei mais o que sinto-, etc.
-œEtc., etc., etc.,- é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visío de sua vida interior é o que chamamos de -œgalinha-. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escndalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo nío se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.
A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradiçío de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda nío se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha nío há jeito: está na sua condiçío nío servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal nío nos interessa.
Dentro de si a galinha nío reconhece o ovo, mas fora de si também nío o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coraçío batendo, com o coraçío batendo tanto, ela nío o reconhece.
De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Nío o reconheço, e meu coraçío bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a nío poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo nío existe. Já nío consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.
A galinha nío queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser -œfeliz-. A que nío percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que nío sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que nío sabia que -œeu- é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que -œeu- significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo sío aquelas que sío um -œeu- sem trégua. Nelas o -œeu- é tío constante que elas já nío podem mais pronunciar a palavra -œovo-. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas nío estivessem tío distraídas, se prestassem atençío í grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
Comecei a falar da galinha e há muito já nío estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.
E eis que nío entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço í existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me í minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chío e lavam a roupa, servindo sem a glória de funçío maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós í s vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mío, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E entío, nío é necessário o disfarce: embora nío se fale, também nío se mente, embora nío se diga a verdade, também nío é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusío de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é nío ter. Inclusive amor é a desilusío do que se pensava que era amor. E nío é prêmio, por isso nío envaidece, amor nío é prêmio, é uma condiçío concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso nío faz do amor uma exceçío honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, í queles que atrapalhariam tudo se nío lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes sío dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Nío é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, sío apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável nío ser compreendido, e ele nío suportava mais nío ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas nío incluíam nenhuma explicaçío. Houve outro também eliminado, porque achava que -œa verdade deve ser corajosamente dita-, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal nío é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte nío sío por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente nío podem ser levados em consideraçío. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensío que nío discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.
Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhí. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e nío um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: nío sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira funçío, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dío como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dío apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu nío sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dío, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traiçío. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traiçío mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil nío atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e nío lhes importa como. Pois, com minha atençío errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos nío adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noçío de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho nío poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e nío deu certo; ficou-me até hoje essa mío trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde entío, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que nío sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coraçío batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que nío estou reconhecendo! Com o coraçío batendo de emoçío, eu pelo menos nío compreendo! Com o coraçío batendo de confiança, eu pelo menos nío sei.
Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. -œFalai, falai-, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tío cansada.
Por devoçío ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoraçío possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Entío – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.