• Texto: Ator Substituto
  • Autor: Erika Figueira
  • Interpretação: Erika Figueira (@erikapes) – Sexo & Tintas
  • Músicas:
    • Bachianas Brasileiras nº 5 – íria – Uakti
    • íria on G String – Bach

Autor Substituto

As cortinas se abriram e o cenário era complexo e movimentado, atores da frente se movimentavam freneticamente e esbravejavam em uma cena sem aparente sentido.

Eles iam se retirando da cena, como se estivessem passando pra o final de uma fila, até que em um desses -rodí­zios-, foi exposta nova -pilha- de personagens no centro do palco, e um ator de máscara branca, trajando apenas um jeans, se encontrava amarrado como um fantoche, cujas linhas iam até o topo do teatro, e quem prestasse atenção, veria sombras quase grudadas nesse teto, de duas mãos manejando estas linhas.

Pelo jeito esse artista que manipulava esse homem fantoche, não tinha muita experiência ou era bastante ditador, os atores se desentrosaram, e se a princí­pio todos acharam que a cena descabida era parte proposital do ato, pela feição e pelo diálogo cortado dos outros personagens, ficou claro que se tratava de uma falha inaceitável de ser concebida, em um espetáculo tío caro e curto que é a vida.

Na plateia começaram a gritar: – Tirem esse ator! Tirem esse fantoche!!

Suas linhas então se afrouxaram, me parece que essas mãos manipuladoras se cansaram do fracasso de seu personagem, então, ator solto- caiu desajeitado como um mamulengo, ficou um pouco deitado, tentando esconder a vergonha causada por esse grande engano, a plateia se fez silenciosa, apagaram-se as luzes, ele aproveitou o escuro pra verter as lágrimas que também envergonhadas, insistiam em não participar do espetáculo.

A luz se acendeu, em apenas um foco, o deixando como o centro absoluto das atenções então ele se levantou, ficou de pé com as próprias pernas pela primeira vez durante essa peça, mas com a postura ereta, com os braços relaxados, parado continuou-apenas sua cabeça se movia, tentando buscar entre a plateia, alguma referência que pudesse ajudá-lo a compreender onde estava.
Mais uma vez a plateia se revoltou, gritando, vaiando e já não dava pra se perceber frase alguma com sentido desses consumidores de dor, desses admiradores de tragédias-apenas a intensidade dos murmúrios chegava ao palco como flechas querendo o atingir.

-Parem! Por favor entendam, eu estou na peça errada! Eu não ensaiei pra esse papel!

No fundo da plateia a voz rouca de uma senhora, com muito esforço gritou:

-Filho, você não é o único! Quase ninguém nessa vida, atua na sua própria história, e é por isso que eu estou agora, quase no fim da minha vida, sentada deste lado do teatro, apenas assistindo, nunca atuando-não tem forças pra representar? Venha pra cá pro lado dos viventes passivos e apenas assista espetáculos alheios!!

Um coro concordou com a justificativa dessa senhora, lançando mais verbos pra ele sair daquele lugar.

-Não, mas eu tenho a minha história! Apesar de terem me colocado aqui como substituto, eu sei que eu tenho a minha própria história!

-Então a conte e não nos faça perder tempo!!

O silêncio ruidoso mais uma vez assolou o teatro, ele estava olhando pra todos os lados e pra lugar nenhum, as luzes se acenderam e o trabalhado cenário antes urbano, foi substituí­do por um branco perturbador.

-Eu não lembro-eu não lembro da minha história.

Uma figura com aparência um tanto o quanto louca, se levantou da plateia, com um bigodão finalizado em curvas, sabe-se lá o poder que essa criatura tinha, que tudo o que ele dizia, se transformava em imagens concretas no palco, assim como o ator, impelido sabe-se lá por que força, acompanhava o roteiro antecipando os acontecimentos poucos segundos antes da fala desse diretor maluco:

-Meia noite, o som brilhava no horizonte, tartarugas voavam de galho em galho, e um homem nu, de mão no bolso, sentado em uma pedra de madeira, dizia:

E o ator no palco gritou:

-É melhor morrer do que perder a vida!!

Nesse trecho do homem nu, a plateia feminina começou a gostar seriamente da história, o ator falava pouco mas bem, mas o diálogo das suas coxas também era bastante complexo-mas o roteiro desse -louco Dali-, acabou- e o cenário novamente se tornou alvo, alvo sinônimo de branco e sinônimo de -meta mirada-.

Mas a fisionomia do ator já era outra, apesar de mais uma vez ele ter sido arrastado pra uma história que não era sua-ele até que se divertiu, sorriu dentro desse non sense-

Apesar dele não se lembrar do seu passado, ele começou a perceber que tudo o que ele pensava, se materializava no palco, em formas e cores-por que puto da vida, ele gritou-

-Eu só queria ter asas pra sair voando daqui!!

Asas lindas enormes surgiram crescentes em suas costas chegando a formar sombras na plateia-que finalmente começou a expressar interesse no espetáculo, do homem nu e com asas.

A velhinha semi morta encarquilhada lá atrás, ficou tão animada, que rejuvenesceu!! Desejou até estar no colo daquele ator, e esteve!!

A assanhada agora bem jovem e voluptuosa ainda gritou:-Voa!! E ele voou-

Todos riam deslumbrados, e quanto mais esse deslumbre atingia os sentidos do ator, mais ele esquecia qual era sua antiga história, mas em compensação, ele começou a criar um mundo novo que ele não imaginava que era possí­vel existir.

Esse novo mundo começou a soterrar o cenário daquela história, que não era a sua-e nada mais importava, pois será que realmente esse ator teve um palco antes desse? Realidades são facilmente esquecidas por piores que sejam, novas realidades são sempre possí­veis de serem construí­das, até sob o mesmo cenário dramático já montado.

Nosso personagem particular começa a vida na pretensão de ter uma peça só sua-a falta de experiência desses atores, os fazem construir um cenário apenas com o mundo concreto que está a sua volta: pegar uma estrada e posicionar, escolher uma profissão e encarnar-interpretar uma ilusão e nunca se entregar-de repente-no meio da história, você se engana de que tudo isso que está a sua volta não é o mundo que você construiu-mas é!

No momento em que você se preocupava com o conceito alheio de sucesso- os primeiros aplausos deixaram seu ego vaidoso-então você construiu cenários nada, nada particulares: Essa história realmente deixou de ser sua, o mundo de cada um é tío diverso, que raramente suas imagens seriam concretas ou comuns. Sobram matérias primas palpáveis até no lixo e é lá que você foi buscar elementos pro seu cenário, enquanto a escassez da ilusão, da fantasia, do oní­rico, não beneficia o desenvolvimento de espetáculos originais, pois assim seria sua história particular: surreal, ou supra-real.

Olha! Puxe toda a matéria desse cenário pós apocalí­ptico como um imenso tapete- embaixo dele está a história que É SÓ SUA!! Arranca a realidade do teu palco! Olhe pra vida a traduzindo com a SUA LENTE, quebra a merda da bússola falsa que te deram pra você não se perder nos seus caminhos concretos, foi ela que te levou pra uma vida ilusória. Volte a se perder sem rumo no espetáculo que era seu, atue mambembe nos seus delí­rios- você virou ator substituto quando fez questão de ser um homem real, foi nesse momento que da história dos seus sonhos, você esqueceu. Então pare de interpretar, tire a sua máscara, lave o rosto, arranque sua pele e mostre o teu espí­rito: Esse é o único personagem que te leva realmente a algum lugar.

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